Janeiro/2025  Psicologia/Luto

 

Precisamos conversar sobre Luto

 

“Lutos Finitos e Infinitos”

Baseado no livro de Christian Dunker

 

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O filme “Ainda estou aqui” me lembrou que já deveria ter escrito um informe sobre o luto.

 

Ao sair da sala do cinema, que contou com um silêncio mortal de todos que ali estavam e até pareciam quase não respirar, visitei uma livraria. A sincronicidade Jungiana – uma coincidência cheia de sentido – me mostrou o livro “Lutos Finitos e Infinitos”. Este livro de Dunker me ajudou a compreender melhor o que relatam alguns pacientes enlutados.

 

Compartilho aqui conceitos, ideias e reflexões relevantes, extraídas do livro. Pareceu-me uma boa maneira de tratar e estimular a discussão sobre o tema.

 

Apesar do entusiasmado desejo de eterna juventude e de ser imortal, precisamos falar da nossa natureza mortal e do processo de luto.

 

Este informe contém recortes, adições e edições do capítulo de Introdução do livro "Lutos Finitos e Infinitos".

 

 

Quando o Luto se apresenta ...

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“Tenho notícias da perda, sou tomado pelo espanto e me recuso a acreditar que ela é real.

 

Recolho-me em um estado de introversão, recolhimento e dor, como se tivesse sido narcisicamente ofendido.

 

Revisito minhas lembranças tomado pela tristeza da ausência, percebo que minha vida se abreviou, se empobreceu ou perdeu sentido.

 

Começo então, lentamente, a me perguntar o que foi que perdi naquela perda e o quanto de mim foi-se junto com ela.

 

Especulo entre amor e ódio, oscilo entre culpa e vergonha, medito sobre a natureza de minha relação com o objeto perdido; comparo e examino a relação dessa perda com outras, passadas ou vindouras.

 

Finalmente, construo um molde suficientemente legítimo e apropriado do objeto perdido, mas agora ele está dotado de um novo signo de realidade: símbolo, representação ou traço, que é um resíduo ou um representante sintético do que se foi.

 

Surge um sentimento de libertação, enriquecimento, agradecimento por ter sobrevivido e alegria por poder carregar o objeto perdido dentro de mim, agora em uma nova figuração do desejo: a saudade.”

 

 Christian Dunker

 

Lutos Finitos e Infinitos

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Um luto termina quando a perda se integra em uma cadeia de lutos que o precedeu e o tornou possível. Essa tarefa pode se afigurar terminável – Luto Finito - para alguns e infinita – Luto Infinito - para outros.

 

Há muitas circunstâncias pelas quais o luto se complica, se adia ou deixa uma lesão que se transmite geracionalmente (transgeracionalmente).

 

O luto pela perda de filhos, especialmente quando pequenos, o luto sob sentimento de injustiça, os lutos de pessoas desaparecidas – como no caso do filme “Ainda estou aqui” – privadas de ritos fúnebres ou destituídos de memória são particularmente aptos a tornarem-se lutos infinitos.

O processo de Luto

 

Quando se fala em luto, a referência imediata é a perda de uma pessoa muito amada e querida.

 

Freud pensava que o processo de luto associado à morte da pessoa amada seria uma espécie de modelo para entender outras perdas. Há luto sempre que uma relação de amor se desfaz pelo abandono de uma das partes.

 

Podemos distinguir lutos do ser humano, cuja referência é a morte, e lutos do estar, ligados a uma condição da vida, como o luto pelo fim da infância, pelo fim de um romance ou amizade, pela migração ou imigração, pelo fim de um emprego, pela perda de uma condição do corpo ou da saúde.

 

Há lutos ligados aos limites do cuidar, em que não mais nos relacionamos com o que amamos e queremos. Há também lutos que criam novas relações, que nos transformam e que se engajam e se associam ao afeto com outros lutos. Há ainda lutos sem precedentes, quer pela sua magnitude, quer pelo ineditismo de seu acontecer.

 

Vivendo o Luto

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Viver o luto não é tão difícil de descrever: algo se perde tornando-se passado, algo se transforma vigorosamente no presente e algo é reconstruído e permanece conosco no futuro.

 

Contudo, viver o luto é muito mais do que isso, sendo considerado como a perda de uma pessoa que morre ou como um modelo para perdas de todo tipo: ideais, laços, lugares, formas de trabalho e até mesmo de experiências corporais.

 

As teorias sobre o luto, psicanalíticas ou não, mobilizam sempre, ainda que indiretamente, uma certa concepção de pacto, troca ou substituição simbólica entre aqueles que foram, os que ficaram e os que ainda virão.

 

Para Freud, “O luto, geralmente, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc”

 

Como nos sentimos quando enlutados

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O Processo de Luto nos traz um desânimo profundamente doloroso. Perdemos temporariamente o interesse pelo mundo e inibimos toda a atividade, chegando a nos recolher em nosso mundo pessoal e deixando de fora o que nos era aprazível.

 

A capacidade de amar diminui.

 

Rememoramos o que foi perdido e tudo mais que se perdeu junto.

 

Temos sentimentos de culpa e de vergonha. Muitas vezes fantasiamos que poderíamos ter evitado que a perda acontecesse.

 

E tudo isso até que produzimos um novo afeto, que começa com a dor da perda e termina com a sensação agradável de libertação, enriquecimento, agradecimento pelas experiências vividas, por ter sobrevivido e alegria  por carregar dentro de nós o objeto perdido. Esta pode ser uma boa maneira de descrever a Saudade.

 

 

Patologias individuais do luto

 

Quando acolhemos e colaboramos com uma pessoa que parece estar  vivenciando patologicamente um luto, os sintomas que se seguem devem ser observados e tratados, eventualmente com auxílio profissional.

 

(1) Quando a natureza da perda se confunde com o desaparecimento, seja pela falta do corpo, pela natureza não confirmada do acontecimento, seja pela perda indeterminada, coletiva ou de massa.

 

(2) Quando o luto é apressado, suspenso ou negado, tanto porque há urgência e necessidade da reposição que impede o vazio, quanto pela impossibilidade de ritos coletivos, ou ainda pela indisponibilidade psíquica de fazer o luto.

 

(3) quando a memória é bloqueada traumaticamente, pela morte violenta ou completamente inesperada, na qual a angústia da perda dissocia a consciência, criando fenômenos de repetição, despersonalização ou desencadeamentos.

 

(4) quando a desqualificação moral, religiosa ou política do falecido impede que o luto o integre à cadeia histórica da comunidade humana, caso de certos atos sociais condenáveis, de condições específicas da fantasia, de enlutamentos que formam parte da demanda de reconhecimento e justiça dos sobreviventes.

 

(5) quando estão indisponíveis ou interditadas condições subjetivas ou objetivas para reconhecer, elaborar e transformar o que foi perdido em artefatos de memória cultural dando forma transgeracional e cultural àquela existência.

 

(6) quando terminar o luto torna-se um ato inadmissível, lido como sinal de desamor, desonra ou desrespeito aos que se foram: por exemplo, nas viúvas ibéricas, das quais se espera, como prova de amor, vestir negro e mantilha pelo resto da vida, ou das viúvas hindus, condenadas a partir com seus maridos.

 

 

A importância do Luto para a OMS

 

Para a OMS (Organização Mundial da Saúde), das nove experiências consideradas mais danosas para a saúde mental, sete envolvem perdas: perda de parente próximo, perda de trabalho, separação dos pais (crianças), separação do casal, adoecimento grave (perda da saúde), mudança de cidade ou país, mudança etária (fim da infância, passagem para a adolescência, entrada na vida adulta ou envelhecimento).

 

As únicas condições não diretamente referidas a perdas, dizem respeito à violação de direitos humanos, à segregação e à estigmatização. Ainda assim, poderíamos pensar que, nesses casos, se trata da perda de uma certa pertinência à comunidade humana.

 

 

E nas sessões de psicoterapia ...

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Quando a demanda do paciente é acolhimento e suporte à sua vivência do processo de luto, considero – de forma simplificada – que o processo que ele está vivenciando tem três etapas: a negação, a revolta e a tristeza. E que o processo terminará quando a tristeza der lugar à saudade. Estas etapas não ocorrem sequencialmente. Sua dinâmica parece caótica e cada etapa começa e termina inúmeras vezes. Em alguns casos, o luto parece que nunca vai terminar.

 

Uma questão relevante para o processo psicoterapêutico é que o problema parece residir na experiência do sentimento ilusório de propriedade.

 

Não temos como nos apropriar  de uma pessoa, seja ela filho, filha, cônjuge, companheiro, companheira, amante, pai, mãe, amigo, amiga, ou quem quer que seja.

 

"Para perder é preciso ter!"

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O processo de luto, sob o ponto de vista da propriedade do objeto, parece terminar com a criação de uma nova relação de pertencimento e apropriação, que chamamos de introjeção simbólica. De outra forma, nos casos de luto infinito, o sujeito parece não ter introjetado simbolicamente o objeto perdido ou as qualidades inerentes a esse objeto.

 

La Planche e Pontalis, no Vocabulário da Psicanálise, descrevem assim a Introjeção:

 

“Processo evidenciado pela investigação analítica. O sujeito faz passar, de um modo fantasístico, de “fora” para “dentro”, objetos e qualidades inerentes a esses objetos.

 

A Introjeção aproxima-se da incorporação, que constitui o seu protótipo corporal, mas não implica necessariamente uma referência ao limite corporal (introjeção no ego, no ideal de ego, etc.).

 

Está estreitamente relacionada com a Identificação.”

 

Considerar e estimular a capacidade da Introjeção Simbólica pode ser um recurso muito útil para ajudar os pacientes a transformar o Luto Infinito em Luto Finito. E assim, transformar a tristeza em saudade.

 

 

Sugestão de Filme

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Que tal (re)vê-lo sob a ótica do processo de luto?

 

Como você explicaria o Processo de Luto da Eunice?

 

Seu luto seria saudável ou patológico?

 

Teria ela conseguido fazer um Luto Finito ou o filme apresenta um exemplo de Luto Infinito?

 

Referência bibliográfica:

 

Lutos Finitos e Infinitos

Dunker, Christian Ingo Lenz; Lutos finitos e infinitos; 1ª. Edição; São Paulo, Planeta Brasil, 2023

 

Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis

Sob a direção de Daniel Laplanche ; tradução Pedro Tamen; 4ª. Edição; São Paulo; Martins Fontes, 2001

 

Ainda estou aqui

Direção: Walter Salles / Roteiro Murilo Hauser, Heitor Lorega / Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello